5/24/2021

André Ribeiro, o Rei de Jacarepaguá

Foi um dia ensolarado, quente, como todos os dias de março costumam ser, às vezes encerrados com uma chuva torrencial, uma temeridade para o que queriam fazer, uma jogada de mestre do prefeito Cesar Maia: trazer a então recém-descoberta (pelos brasileiros, claro) Formula Indy, a IndyCar Word Series, que estreava no país num circuito de formato inusitado, um trapezóide-oval, onde as tomadas de curvas mais agudas exigiam uma freada forte e troca de marchas, um desafio para os pilotos, além do sol e calor inimagináveis para aqueles norte-americanos acostumados às temperaturas bem mais brandas do hemisfério norte.

Naquela época eu já gostava muito de automobilismo, trabalhava numa financeira, mas nem de longe imaginava ir assistir à corrida, ingressos com preço salgado. Na época eu nem carro tinha pra ir lá longe no autódromo, um dia meu pai me liga e pergunta se eu queria ir ver a corrida, depositou o dinheiro na minha conta e mandou comprar os ingressos.

Setor norte, lá junto da saída pra grande reta, longe dos boxes, é que os melhores já estavam esgotados e eram bem mais caros nas mãos dos cambistas, papai não se importou e tocamos pra lá no sábado, bem cedo pra assistir aos treinos, dormi na casa dele pra domingo ir pra corrida.

Jacarepaguá em dias de grandes eventos era mais complicado de ir do que normalmente, se naquela época ir assistir uma Copa Shell era só deixar o carro estacionado do lado de fora, para esse evento foi feito um esquema de estacionamento no Riocentro, que para quem conhece é cerca de 1 km do autódromo.

Deixamos o carro naquele estacionamento monstruoso do centro de convenções e fomos andando pela lateral da Abelardo Bueno, fechada para veículos particulares, mas com intenso movimento de carros credenciados, caminhões, ônibus levando o pessoal vip, pois os boxes normais viraram uma imensa área de convivência e em frente à reta principal foram construídos os boxes estilo Indianápolis, com uma pequena mureta e as torres dos chefes de equipe.

No caminho, vários vendedores ambulantes, de camisas, chapéus, toalhas, chaveiros, que jocosamente meu pai chamava de toureiros, porque eles ficavam abanando seus produtos na frente dos passantes.

Quando chegamos ao portão de acesso, já ouvíamos os carros passando na pista. O uivo dos motores passando pela reta era impressionante, para quem tinha estado uma década antes assistindo a F1, era diferente, os motores turbos tinham uma assinatura sonora singular, como também o cheiro de etanol, sutil, que impregnava o ar.

Lá dentro, a balbúrdia. A organização do evento tinha que providenciar rádios para que os espectadores acompanhassem a corrida com a narração da rádio oficial da prova, foi um fiasco, eram uns radinhos chineses, coloridos, emborrachados, tinha um deles comigo até uns anos atrás e acabei jogando fora como sucata, uma pena.

Os autofalantes das arquibancadas alternavam entre a narração da prova e o locutor local, ouvíamos mal e mal alguma coisa, mas dava pra entender o que estava acontecendo, como tínhamos estado no treino de sábado, sabíamos que André Ribeiro largaria na segunda fila, ao lado de Greg Moore, que era casca grossa, podia dar problema.

Ficamos ali, torrando no sol, que naquele dia de fim de verão estava até agradável, aguardando a largada, naquele ponto da arquibancada estava cheio, mas não a ponto de ficar insuportável.

Vieram os carros, duas voltas de apresentação, havia uma coisa: era praticamente impossível vê-los passando na sua frente, ou você via eles vindo ou eles se afastando, a velocidade deles era altíssima, e isso contando que eles estavam saindo da curva 4, que era a mais "lenta" do circuito.

Não lembro muito dos detalhes da prova, mas lembro vivamente quando eles entraram na reta e lá na frente o safety car abriu para o boxes, e, simultaneamente, os 27 carros alinhados dois a dois, aceleraram num estrondo abafado e agudo, envolvido numa nuvem de etanol cuspida dos motores que deixou o ar quase irrespirável onde estávamos, isso se repetiu na volta seguinte, e na outra, até que os carros começaram a se desgarrar um dos outros, mas o cheiro persistia, impregnado nas nossas roupas, parecia que se alguém acendesse um fósforo o ar se incendiaria, então formou-se uma fila onde aqui a li se viam disputas de posição, muitas na chegada da 4, um ponto de frenagem delicado, vindo da 3, praticamente uma "reta torta". 

De onde estávamos conseguíamos ver até o fim da reta, meio indistinguível por conta da névoa de calor que emanava do solo, mas víamos claramente quando entravam na 1 por conta do relevê, a dois ficava encoberta pela torre e pelos boxes, mas conseguíamos ver a aproximação da 4 pra 3, que era sempre emocionante porque as ultrapassagens se davam praticamente embaixo de nossos pés.

Na volta 11 (chequei na internet, lembro do acidente mas não lembrava a volta), um carro bate forte na saída da 4, uma pancada seca, um ruído alto, vieram os carros de socorro, umas picapes GM amarelas que anos depois seriam o pivô da crise que acabaria com a gestão da PPE, mas isso é outra história.

A corrida prosseguiu, calor, desci algumas vezes para comprar água para nós dois, papai não arredou pé do lugar onde estávamos e me atualizava cada vez que voltava do périplo de descer e subir as arquibancadas.

Perto do final, uma bandeira amarela juntou o pelotão, lá estava ele, o carro do brasileiro, com sua sua pintura, amarela/preta/vermelha, atrás duas Penske/Malboro, os carros mais poderosos da categoria, eu não sabia na época, mas a Tasman, equipe do André Ribeiro, era pequena, mas mesmo com aquele carro sem tantos recursos tinha conseguido bons resultados no ano anterior. A ameaça dos Penske era real, mas ver um brasileiro ali, liderando a corrida depois de ver Gil de Ferran e Emerson Fittipaldi afundarem na classificação por problemas nos carros, já estava bom demais.

Relargada, o cheiro do etanol nem incomodava mais, os carros passam colados na primeira volta, mas pouco a pouco o carro do brasileiro se afasta e termina a prova com uma confortável vantagem de mais de 2 segundos, o que para a categoria equivalia a um binóculo, além de se tratar de ter derrotado a equipe mais poderosa do grid.

A volta do vencedor foi indescritível, para onde se olhava era um mar de braços acenando camisas, bandeiras, bonés, assistíamos à história ser escrita na nossa frente, um brasileiro ganhando a primeira corrida em terras brasileiras prometia um futuro promissor para a categoria e havia até quem imaginava  mesmo uma mudança de hábito na preferência do brasileiro pelo esporte a motor, órfãos que estávamos desde a morte de Ayrton Senna em maio de 1994.

André ainda teria uma carreira na Indy, correu pela Penske, mas resolveu parar ainda jovem, com 32 anos, em 1998, e foi cuidar da vida, administrando uma rede de concessionárias pelo país e ainda ajudou a promover categorias como a F-Renault e F-Clio.

Em 2005, quando essas categorias passaram pelo circuito de Jacarepaguá, já seriamente ameaçado pelo Pan 2007, estive no autódromo, já representando o blog, cobrindo o evento, assisti à homenagem que fizeram a ele, levando o troféu e o carro.

À esquerda na foto, o pequenino André, me impressionou muito a estatura dele, parecia uma criança.
O carro com que ele venceu a corrida


Na época não lembro se cheguei a falar com ele, havia muita pressão política, muita gente tinha medo que num ato espontâneo o piloto falasse algo em defesa do autódromo, mas pelo menos pude tirar as fotos bem de perto,  tirei uma com ele mas a minha valente kodakinha digital falhou.

Mas voltando aquela corrida de 96, lembro que voltando para o estacionamento, meu pai exultante de ser "pé quente" e assistido à vitória de um brasileiro, viu um daqueles ambulantes "toureiros" fazendo uma queima de estoque de camisas e comprou duas, uma pra mim e outra pra ele, camisa que guardo até hoje como recordação daquele dia.

Agora isso é passado, um passado que relembro com um sorriso no rosto, uma lembrança boa do meu pai, que se foi, aos 91 anos de idade, há duas semanas, dormindo, em casa, como ele queria. Só lamentei não ter estado ao lado dele nesses momentos finais por conta da pandemia, já que trabalho com equipamentos hospitalares, e seria última pessoa possível a estar perto de uma pessoa enferma.

A morte prematura do meu xará André me surpreendeu, principalmente porque ele vinha lutando contra um câncer muito cruel, mas pouca gente devia saber, pois foi discreto até o fim.

Sou grato a ele por ter proporcionado não só a mim e a meu pai, mas também a milhares de brasileiros que estavam naquele dia no autódromo e outros milhares que assistiram pela TV, um momento de felicidade.

Descanse em paz, pequeno grande homem, as pistas dos céus estão abertas para você.


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